A Sala Cecília Meireles não nasceu como Sala. Sua gênese é o Armazém do Romão, conhecida e frequentada confeitaria, com entrada pelo Beco do Império, rua lateral da Sala e que o passar do tempo batizou como Teotônio Regadas. Foi exatamente ali que o comendador Guilherme Porto decidiu edificar o Grande Hotel da Lapa, resultado de sua tenacidade e de seu tino para ganhar dinheiro. Porto pensava grande. Queria mesmo era um hotel de luxo, capaz de ofuscar o concorrido Hotel dos Estrangeiros, ali pertinho, bem no coração do Catete.
O ar de elegância e a movimentação política de então foram ditados pelo comendador, nas últimas luzes do século XIX, com uma República ainda em seus primeiros passos. A escolha do local não deixava muitas dúvidas sobre o olhar certeiro de Guilherme Porto – o novo hotel foi erguido no Largo da Lapa, próximo ao Cassino Fluminense, ao Passeio Público, à Biblioteca Nacional, ao ponto dos bondes e, finalmente, ao movimento das marés. O hotel não duraria para sempre, mas fez e contou sua história. Uma dessas versões foi tecida por Arthur Azevedo em sua comédia opereta A Capital Federal, com três atos, 12 quadras e escrita no final do século XIX.
(…) Cena II
Gerente – Não há mãos a medir! Pudera! Nunca houve no Rio de Janeiro um hotel assim! Serviço elétrico de primeira ordem! Cozinha esplêndida, música de câmara durante as refeições da mesa-redonda! Um relógio pneumático em cada aposento! Banhos frios e quentes, duchas, sala de natação, ginástica e massagem! Grande salão com um plafond pintado pelos nossos meros artistas!
Enfim, uma verdadeira novidade! – Antes de nos estabelecermos aqui, era uma vergonha! Havia hotéis em São Paulo superiores aos melhores do Rio de Janeiro! Mas em boa hora foi organizada a Companhia do Grande Hotel da capital federal, que dotou essa cidade com um melhoramento tão reclamado! E o caso é que a empresa está dando ótimos dividendos e as ações andam por empenhos. (…)
A edificação que acolhia hóspedes, cada vez mais raros diante da decadência do bairro, passou, então, a receber espectadores. Alguns cariocas possivelmente ainda se lembram das sessões de cinema exibidas no Cine Colonial (de 1941 a 1961), que estreou com O Patriota, do francês Harry Baur. À época da estreia, o jornal Correio da Manhã assim descreveu as instalações do imóvel: “Os visitantes estiveram na vasta plateia e nos balcões, com capacidade para duas mil pessoas sentadas em ótimas poltronas. Na cabine das máquinas, os aparelhos de som e projeção Miraphonic, da Western Electric, são os mais perfeitos do mundo. As amplas dependências do Cinema Colonial possuem ar refrigerado sistema Koole-Aire, que injeta 90.000 metros cúbicos de ar lavado e refrigerado em serpentinas de água gelada.” Em 1964, os ventos começaram a soprar em uma nova direção. Um crítico atuante do Jornal do Commercio, Andrade Muricy, destacava a falta que fazia uma sala de concertos na cidade. Por que não o prédio do antigo Cinema Colonial? Afinal, ele fechara as portas em 1961. A desapropriação do imóvel seria um ganho para todos, inclusive para o governador do então Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, um ex-aluno de violino apaixonado por música. Até então, a música de câmara era apresentada dentro das dimensões inadequadas do Theatro Municipal, apresentações que, com frequência, eram uma das razões da sobrecarga na agenda do suntuoso teatro. O governador entendeu. Satisfeito, Andrade Muricy celebrou a decisão de Lacerda de realizar um antigo desejo dos cariocas, e deu a notícia que iria mudar o senso histórico do prédio no dia 23 de dezembro de 1964: “O governador Carlos Lacerda acaba de desapropriar o tradicional edifício do já fechado Cinema Colonial.”
Maestro adjunto da Orquestra do Theatro Municipal desde 1963, Henrique Morelenbaum havia trocado o violino pela batuta. E mesmo sem saber do que se tratava, atendeu à convocação e apresentou-se no Palácio Guanabara. A missão foi uma bela e estimulante surpresa. O jovem maestro deveria planejar algoque fugisse à burocracia e desse à música o lugar de honra que ela merecia. Se concordasse com a proposta, ela ia além: ele deveria acompanhar as obras de adaptação, já iniciadas no prédio. E “com urgência, urgentíssima”.
Cecília Meireles era um nome que se impunha sem qualquer esforço no reconhecimento de seu talento e na admiração do país. Morreu em novembro de 1964. Era poetisa do Brasil e amiga querida de Carlos Lacerda. Não era de se espantar, portanto, que o governador quisesse homenageá-la de alguma forma. A oportunidade apareceu quando, finalmente, o imóvel ganhou uma identidade musical e foi preciso dar-lhe um nome. Lacerda não precisou pensar muito. O nome da sala seria Sala de Concertos Cecília Meireles. Coube ao crítico Walmir Ayala explicitar em um texto divulgado no programa do concerto que inaugurou a Sala: “Em poucos momentos de sua história a poesia brasileira foi tão concebida sobre a música como na obra de Cecília Meirelles. Poucos poetas em língua portuguesa dispuseram com tanta desenvoltura de um instrumento sonoro como ela. Raramente a palavra foi tanto harmonia, ritmo, afinamento.”
Depois de idas e vindas, de poeira, madeira, cimento, de trocas de sabedoria entre arquitetos e engenheiros e de uma dança de operários que desenhava os novos contornos da tão esperada Sala, a inauguração aconteceu no dia 1 de dezembro de 1965. Depois de toda a consagração, a Sala Cecília Meireles passou a ser chamada, carinhosamente, de “a Sala”. Não era mais necessário usar o nome inteiro para que os usuários soubessem a que estavam se referindo. A propaganda boca a boca revelou-se eficiente e um público habitual começou a se formar.
Assim, se por um lado a população amante de cultura ainda não se habituara à Lapa, por outro ela aplaudia Brecht e Weill nessa mesma Lapa. A história da Sala não para. Através dela discorrem lembranças poderosas do universo musical do Rio. Pelas mãos dos diretores Henrique Morelenbaum, José Mauro Gonçalves, José Renato, Ayres de Andrade, Jacques Klein, Isaac Karabtchebsky, Myrian Dauelsberg, a Sala ia cumprindo seu destino. As pessoas encontravam nela certa felicidade, só possível ali, com o que ela oferecia.
Às vesperas de completar 50 anos, e sob a direção de João Guilherme Ripper, há dez anos na função, um novo ciclo aguarda o dia da reinauguração da Sala Cecília Meireles, após quatro anos em ritmo de obras. Com o fim do bate-estaca, das marteladas, das furadeiras, das ferramentas que cortam madeira, voltam à Sala os sons originais, capazes de tocar a alma, levar a mente para outras dimensões e trazer felicidade a quem os ouve – pianos, violinos, violoncelos, oboés, todo e qualquer instrumento capaz de, nos acordes, contar uma história de vida e arte. Sob a batuta de grandes e eternos maestros, a lição primária da música e sua humanidade foi muito bem sintetizada pelo músico húngaro Zóltan Kodály quando ele, um dia, disse que “há lugares na alma onde só a música consegue chegar”.
A Sala Cecília Meireles faz parte de minha história de vida. Também nos relacionamos afetivamente com os espaços nos quais momentos marcantes foram vividos ou simplesmente presenciados. São muitas as lembranças, tanto no palco quanto na plateia. Com a Sala, como todos nos referimos com certa intimidade, temos uma relação mais próxima, menos formal, do que com outros espaços da música clássica. É uma espécie de irmã caçula, a quem gostamos de proteger, oferecer mimos e com quem ficamos à vontade.”
Que nessa nova etapa, a SCM atenda e ultrapasse todas as expectativas que seu público acostumou-se a esperar dessa joia de refinada acústica e do diversificado fazer da Arte Musical.”